Fui ontem assistir ao show do baterista Roger Turner e do saxofonista Urs Leimgruber com integrantes do Abaetetuba - Thomas Rohrer (sax e rabeca), Panda Gianfratti (percussão), Rodrigo Montoya (shamisen e violão) e Luiz Gubeissi (baixo acústico) na B_arco, uma galeria de arte contemporânea com um teatro bem legal para apresentação de grupos de câmara. E o que aconteceu ali no palco foi um negócio incrível, seis músicos virando seus instrumentos do avesso e ainda se valendo de bugigangas mil (varetas, arcos, pequenos objetos de metal e até o vilão ambiental do momento, o saco plástico) para criar uma experiência sonora única, impossível de ser copiada e de ser reproduzida.
Tentar descrever objetivamente o show, além de ser um malabarismo linguístico praticamente impossível, é inútil: tudo estava sendo registrado com microfones e câmeras profissionais e deve cair na rede em breve. Então, no lugar de uma resenha convencional, resolvi fazer um devaneio sobre a relação dos instrumentistas e seus instrumentos.
Acontece que o primeiro set (um trio formado por Turner, Rohrer e Montoya) foi marcado por sons de atrito: varetas pontudas sendo arrastadas pelo corpo do violão, garfos arranhando as peles da bateria, só para citar alguns exemplos. E eu logo pensei: "Pessoas que cuidam muito bem dos seus instrumentos teriam um infarte vendo isso". Mas conforme as apresentações foram se sucedendo (depois teve um trio com Panda, Urs e Gubeissi e, no fim, os seis se juntaram para mandar tudo pelos ares), percebi que era justamente o contrário: os músicos não estavam maltratando seus pobres instrumentos e sim explorando toda e qualquer possibilidade de extrair som, estavam desbravando cada reentrância, descobrindo dezenas de novas possibilidades - era amor e não agressão.
Foi por causa dessa relação peculiar que uma rabeca pode ficar ao lado de um shamisen sem que isso pareça uma tentativa barata de exotismo - libertados do lastro com a tradição nordestina e japonesa, eles eram apenas pedaços de madeira e cordas. Era como se a história de cada instrumento ali tivesse sido zerada. Mas não se deixe enganar pela abordagem naïve: ninguém ali é turista, são todos músicos super experientes, que dominam a arte de tocar convencionalmente seus instrumentos e se valem dessa técnica o tempo todo.
Há uma frase no livro do Derek Bailey sobre improvisação de que gosto bastante: "Opiniões sobre a música livre são abundantes e diferem bastante entre si. Vão desde a visão de que tocar livremente é a coisa mais simples do mundo e não precisa de explicação, até a visão de que é tão complicada que não é possível de ser discutida". Ali, no teatro da B_arco, ambas as opiniões pareceram fazer todo o sentido. A improvisação livre não é o caminho do meio e sim a combinação dos extremos.
Que continue assim.
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Dando aquela flanada corriqueira pelo Youtube, achei esse vídeo que traz imagens de shows do Swans na Inglaterra em 1986 e o clipe de A Screw. É um registro, portanto, da fase mais visceral e soco no estômago do grupo.
Apesar de contar com uma formação não exatamente enxuta (guitarra, baixo, duas baterias e teclado), o som do Swans consiste no mínimo essencial: um ou dois riffs repetidos ad nauseum formam a base sobre a qual Michael Gira grunhe frases como "I'm a coward/ Put your knife in me" ou "I cut off my right hand/ and stand in your shadow".
Funciona como um animal selvagem que recebe uma quantidade de alimento somente necessária para mantê-lo vivo: uma mistura de apatia profunda e fúria incontrolável. E não é só a música que expressa essa condição doentia: a presença de palco de Gira (especialmente no momento em que ele enrola o cabo do microfone no pescoço enquanto canta A Hanging) também denota auto-depreciação e o pendor para a auto-destruição - ele já disse em entrevistas que gostaria de apagar completamente seu corpo com a música e que não suportava sua própria presença física.
Vendo esse vídeo, dá pra entender porque depois o Swans deu uma leve inclinada para a música "pop" em Burning World. Caso continuasse na pegada dos primórdios, Gira teria um colapso no meio de algum show sairia do palco direto para uma ambulância - ou para um carro funerário.
No último fim de semana, entrevistei o Stephen O'Malley e estou assim vomitando corações em slow motion. A oportunidade de bater um papo com o mestre da dronação mundial aconteceu porque o KTL (um dos 405658 projetos do moço) veio tocar no Brasil no festival Sónar. O duo formado com Peter Rehberg começou as atividades em 2006 criando a música para a peça Kindertotenlieder, da diretora Gisèle Vienne, e tocando durante as apresentações.
Dando uma fuçadinha no youtube, encontrei uma série de vídeos da peça, que conseguem dar uma ideia do que se trata essa obra teatral - e vou te falar: isso aí ao vivo deve ser de arrepiar os pelos do dedão do pé:
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“Nessa escassez de ruídos, os primeiros sons que os homens foram capazes de tirar de um pedaço de madeira furado ou de uma corda esticada foram entorpecedores, algo novo e maravilhoso. Os povos primitivos atribuíam o som aos deuses. Era considerado sagrado e reservado para os sacerdotes, que o usavam para enriquecer seus rituais com mistério. Assim nasceu a ideia do som como algo em si mesmo, diferente e independente da vida. E daí resultou a música, um mundo fantástico sobreposto ao real, um mundo sagrado e inviolável” (Luigi Russolo no Manifesto A Arte dos Ruidos)
Ao reouvir o disco Monoliths & Dimensions (que mal tem três anos, mas já é um clássico para os fãs de música lenta e pesada), lembrei dessas palavras do futurista italiano. O Sunn O))) já abordava a música de maneira descolada da vida cotidiana (basta levar em conta a atmosfera altamente ritualizada dos shows, com muito gelo seco e capas de monge), mas nesse disco a coisa foi levada para um outro patamar.
Além das guitarras super distorcidas e do andamento ultra-lento que faz com que o ouvinte perca facilmente a noção da passagem do tempo, há a voz abissal de Attila Csihar entoando letras sobre túneis no céu e estrelas explodindo, e arranjos enriquecidos com trombones, cordas e coros. A sonoridade é grandiosa sem cair no kitsch do metal orquestral, e o clima quase fantasmagórico não dever ser confundido com música feita para dar medo ou com uma exploração sonora do lado sombrio do ser humano: trata-se aqui de um tipo de beleza e elevação a que não estamos acostumados.
Monoliths & Dimensions é uma catedral sonora esculpida em pedra bruta. Para ajudar nesse árduo trabalho, os guitarristas Stephen O’Malley e Greg Anderson contaram com diversas colaborações. Além do já citado Attila Csihar, destacam-se as participações do produtor Randall Dunn e do violista e arranjador Eyvind Kang. Como me disse o violinista Timb Harris (que também participou da gravação do disco), “Randal e Eyvind pegaram as ideias musicais do Sunn O))) e criaram uma supernova artística a partir daí”.
Também merece loas o trabalho feito pelo trombonista Julian Priester, especialmente na última faixa, a instrumental Alice, em homenagem a Alice Coltrane. Essa referência à artista que levou ao jazz a sonoridade e a carga espiritual da música indiana mostra que as influências de Stephen e Greg vão muito além de Earth e Melvins (sempre citados em entrevistas) e do black metal. Os últimos minutos da música, quando as guitarras distorcidas silenciam, é pura delicadeza: sobre uma base formada por sons de harpa, cordas e sopros, um tranquilo solo de trombone lentamente conduz o disco ao fim. É então hora de abrir os olhos e voltar ao mundo real – que parecerá, inevitavelmente, bem sem-graça.
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Faz tempo que não falo do Itamar Assumpção por aqui, né?
Bom, ontem eu estava devaneando ao som de Sunn O))) e tive a ideia de jogar meu TCC na rede. Explicando melhor: em 2009, meu trabalho de conclusão de curso da faculdade de jornalismo foi uma biografia do Itamar. A ideia era continuar o trabalho depois de formada e transformá-lo em um livro de fato, o que não rolou por causa de um certo embaço da família e pela falta de saco desta que vos escreve - foi um estresse e tanto fazer essa bio e, se eu continuasse, teria que escavar ainda mais fundo em alguns assuntos não muito aprazíveis.
Enfim, morreu a ideia do livro, mas o que eu já tinha feito não merecia ficar apodrecndo no meu HD. Então dei um tapinha no texto e botei no Mediafire, para quem quiser ver e comprovar: http://www.mediafire.com/view/?8c46x3vbxrl782h
E falando em Itamar, achei essas duas perolazinhas dando um rolê hoje pelo Youtube:
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